Por Priscila Gonsales

 

Ciclos, fases, etapas. São vários os termos usados para falar sobre mudanças. Nenhum deles, no entanto, pode dar conta de expressar a dimensão do processo em si, considerando conquistas, erros e aprendizados que estão sempre presentes em um momento de transição. Por isso, gosto de fazer analogia com a teoria dos setênios da Antroposofia, uma linha de pensamento que propõe um caminho de compreensão do desenvolvimento humano (físico, intelectual, emocional)  a partir das transformações que todos nós vivemos a cada 7 anos. Disseminada pelo austríaco Rudolf Steiner, a Antroposofia nos convida a olhar para nossa própria história com mais sensibilidade e cuidado, de forma a gerar reconhecimentos e reflexões sobre nossas vivências e aprendizados. A teoria dos setênios, em essência, favorece o autoconhecimento para que então possamos compreender melhor o contexto em que estamos e as relações que estabelecemos com o mundo exterior.

O primeiro setênio da vida do ser humano, dos 0 aos 7 anos de idade, é marcado pelo crescimento mental e físico, sendo que o primeiro é ainda mais acentuado. A criança se conhece e se reconhece no mundo, aprende a andar, conquista seu espaço, começa a falar, a se expressar e até a dar nomes aos seres com os quais se depara. Formas de comunicação e imaginação aguçada são características fortes, assim como o reconhecimento do “eu” que, numa analogia com a constituição de uma organização, tem a ver com a consciência sobre a sua identidade.

No final de 2010, mas operando oficialmente no início de 2011, surge o Instituto Educadigital. Há sete anos minha vida mudava completamente. Decidi finalizar um ciclo de atuação de 10 anos no CENPEC para empreender minha própria organização social e me aventurar em um universo de experimentações, ousadias e, claro, diversos contratempos. Naquele momento, a única certeza era a necessidade de ter um pouco mais de autonomia para criar e propor novas possibilidades para a educação a partir dos elementos trazidos pelo advento da cultura digital, algo mais moroso de se conseguir quando se está em uma instituição já com anos de existência e diversas instâncias decisórias. Era preciso mostrar que habilidades de pesquisa, comunicação e publicação não se resumiam a meras atividades relativas ao uso pedagógico da internet, mas sim representavam novas aprendizagens, posturas e atitudes. A identidade de uma organização social, no entanto, não se forma apenas pelas ações que ela realiza, mas sim por sua missão no mundo. Ter um propósito é condição fundamental para uma instituição poder, de forma coerente, realizar seu trabalho e contribuir com sua comunidade.

 

A história do Educadigital, no entanto, ilustra como nem sempre essa identidade emerge tão claramente no momento da sua fundação, como se fosse algo celestial ou estrategicamente planejado. Em vez disso, a identidade veio da própria experiência de ação, como um resultado do aprendizado e da análise crítica sobre a ação. Ainda que o desejo de fazer acontecer seja muito forte e motivador por parte de quem cria uma instituição, somente as descobertas no processo é que vão dando pistas do que pode ou não fazer sentido. A primeira pista para o Educadigital veio logo no primeiro ano de operação, 2011, e de um novo desafio de trabalho, focado em uma temática pouco conhecida até então, a da Educação Aberta .  A advogada (hoje amiga e membro do conselho consultivo) Carolina Rossini, já morando nos Estados Unidos havia alguns anos, precisava de uma pessoa e de uma instituição no Brasil para coordenar as ações locais de advocacy do projeto Recursos Educacionais Abertos Brasil (REA.br), focado em advocacy para a causa nas instâncias legislativas nos três níveis de governo.

 

O convite veio com muita generosidade e confiança no meu perfil profissional que, mesmo à frente de um Instituto recém-criado, conseguia com facilidade reunir uma rede de profissionais com expertise no campo de atuação. Como acontece com a criança pequena do 1º setênio, foi preciso muito esforço e persistência para aprender algo novo, assim como imitar atitudes de pessoas inspiradoras para compreender o valor daquela causa social. Falar de abertura em educação é muito mais do que enfatizar a importância de haver recursos educacionais disponíveis com licença de uso livre para  reuso, distribuição e adaptação. Trata-se de uma concepção de educação que ressalta a formação de consciência sobre as escolhas que fazemos e os caminhos que definimos. Escolhas podem nos aprisionar ou nos motivar. Certos caminhos podem nos fazer chegar rápido a uma meta ou ampliar essa mesma meta se nos abrimos para possibilidades de colaboração.

 

O primeiro setênio da criança é marcado pela abertura para absorver novas informações e pela entrega. E foi isso que aconteceu, entrei de cabeça no mundo da educação aberta, com todos os percalços, que no fim valeram a pena, não apenas pelas conquistas que estão vindo numa crescente, como também para a consolidação de um identidade no Brasil e internacionalmente. Aos três anos de vida à frente do Educadigital, veio o primeiro reconhecimento global: fui identificada como empreendedora social (fellow) da rede global Ashoka pelo trabalho em prol da educação aberta no Brasil. Uma bolsa financeira de incentivo, mais que bem-vinda, ajudou a manter o foco nos ideais de uma instituição que deseja ser efetiva independentemente de estrutura física constituída.  Além disso, poder criar e concretizar ações em torno de uma causa para a qual até hoje no Brasil não há sequer linhas de financiamento ou patrocínio por parte de fundações públicas ou privadas.

Sustentabilidade sempre foi o calcanhar de Aquiles de uma organização social. Por ter sido pauta constante nas discussões internas das organizações em que trabalhei anteriormente, em minha bagagem não havia ilusões a esse respeito. Era fundamental equilibrar propósito com a necessidade de manter a organização.  Ou seja, estabelecer desde o início uma postura ativa em vez de só esperar os projetos chegarem para serem executados.

Foi assim que a iniciativa Design Thinking para Educadores nasceu. Quando fiz a especialização em DT em 2010, quase ninguém tinha ouvido falar no assunto, menos ainda no meio educacional. Até que, em 2012, tomei conhecimento do material que a IDEO havia feito especialmente para uso em educação com licença Creative Commons BY-NC-SA. De um simples desejo de traduzir e adaptar esse material e torná-lo público e disponível, nascia uma linha nova de atuação, que atende não apenas a Educação Básica, mas também a Superior, e que segue cada vez mais forte e robusta. Obter financiamento inicial foi suado e precisou de muita justificativa. Perguntas do tipo “mas você não trabalha com tecnologia?” pediam argumentos bastante assertivos em relação a uma abordagem aparentemente analógica que usava post-its:  mesmo em tempos de tecnologia digital, a educação precisaria sempre de empatia, colaboração e experimentação. Além disso, a convergência de mídias e a perspectiva de múltiplas possibilidades metodológicas é que podem de fato levar à inovação.

 

Em 2016, usamos as possibilidades metodológicas do DT em um Hackathon com estudantes do Ensino Médio, em 5 estados brasileiros, para prototipar soluções de melhoria na gestão escolar. Crises do primeiro setênio Sem dúvida foram várias crises. Até dariam insumo para elaborar uma publicação só para relatar todas elas. Mas vou dar uma pausa em relação a elaborar publicações, pois foram muitas em pouco espaço de tempo: em 2014 o material de DT para Educadores,  em 2016, o estudo Inovação Aberta em Educação, em 2017 o livro-guia Como Implementar uma Política de Educação Aberta e em 2018 o livro Design Thinking e a Ritualização de Boas Práticas Educativas. Diante das crises, reações de desalento são comuns e normais mas, se não tomarmos cuidado, elas nos paralisam e nos impedem de buscar outras oportunidades. Para a maioria das crianças, o final do primeiro setênio representa o início da vida escolar e isso pode trazer crise e medo ou, se bem trabalhadas, evocam sentimento de auto-afirmação, orgulho e libertação.

 

Quando o financiamento de cinco anos do projeto REA.br foi descontinuado devido à instabilidade na política nacional em 2016, o grau de motivação chegou a quase zero. Justamente no momento em que mais sabíamos como continuar, por conta de todo o aprendizado acumulado. Porém, foi justamente ali que consegui compreender claramente que Débora Sebriam e eu havíamos nos tornado profissionais gabaritadas da Educação Aberta em todos aqueles anos. Que nosso trabalho não era condicionado a um projeto nem a um financiador. A causa nos movia e nos move até hoje. Foi com base nessa autoconfiança que continuamos, buscando outras oportunidades de financiamento e gerando novos resultados antes nem almejados. Lançamos em 2017 a Iniciativa Educação Aberta, em conjunto com a Cátedra de Educação Aberta da UNESCO no Brasil e nos unimos a outro parceiro, o professor Tel Amiel, atualmente na UnB, com quem somamos forças para nossas atividades na formação de gestores/servidores públicos no Ministério da Educação (MEC). Hoje temos 300 professores da Universidade Aberta do Brasil em nosso curso de REA e conseguimos aprovar a primeira portaria de REA no MEC.

 

Em relação ao Design Thinking, se em 2014 seu uso na educação era novidade, em 2018 é mencionado em todo e qualquer congresso educacional. Pipocam empresas e pessoas que oferecem formação sobre a abordagem. Alguns enaltecem o caráter de inovação que o DT pode trazer, outros querem enquadrá-lo numa lista de metodologias ativas. Sigo com a crença de que o DT deve estar embasado em uma concepção de abertura, flexibilidade e autoria. E que pode ser remixado segundo diversas intencionalidades, como as recentes junções que fiz do DT com a Jornada do Herói, com o Jogo dos Futuros Emergentes e com o Jovem Aparelhado. Criei um curso-laboratório online de formação de facilitadores que pode receber no máximo 20 pessoas a cada edição (indo agora para edição 7), pois foca no acompanhamento constante e personalizado, visando germinar uma rede de facilitadores no Brasil e no mundo.

 

Rumo ao segundo setênio 

 

Com todo esse repertório, experiência e conhecimento de causa, me vejo pronta para encarar mais um desafio, o de desmitificar a atividade de mentoria como sendo distante do mundo da educação. O ConexãoIED – Mentoria on-line tem como tema central a Educação para o Desenvolvimento Humano.  Como professores podem ser mentores uns dos outros? Como podem receber e oferecer mentoria, fomentando cada vez mais a troca e a partilha de saberes e experiências em uma sociedade em constante transformação?  Para saber mais sobre a ideia, vale ler este post aqui. O segundo setênio no desenvolvimento humano é marcado pela entrada na rotina de estudos mais formalizada, pela compreensão do valor do dinheiro, bem como da responsabilidade, da disciplina e de questões éticas.

 

Na Antroposofia, normalmente se fala em desenvolvimento “anímico”, isto é, da alma, a partir do resgate da memória e reconhecimento das emoções. Similarmente, em uma organização, é um momento propício para celebrar as conquistas anteriores e escutar com atenção os sentimentos que agora surgem. Questionamentos chegam também com mais intensidade, especialmente em relação a algumas convicções sobre qual seria a melhor forma de atuar para obter estabilidade financeira, ou ainda ao que o senso comum espera em termos de sucesso e evolução. Nesse sentido, a única certeza que de fato tenho é a de que entro em uma temporada de reflexão ainda mais intensa sobre possibilidades, mas sem que isso impeça experimentações práticas que tanto marcaram minha trajetória. Experimentações que podem abranger novos projetos colaborativos ou mesmo desafios junto a outras organizações. Assim como a criança pequena desta fase, é fundamental valorizar os próprios sentimentos para poder perceber com mais clareza como as escolhas profissionais podem ser emocionalmente ainda mais significativas.

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